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Redenção

de Mariana Luiza

INSTALAÇÃO IMERSIVA

BRASIL, 2023

SINOPSE

"Onde há nação, há brutalidade. E onde há brutalidade, nós somos o alvo"

Jota Mombaça

 

É possível redimir uma nação que quis exterminar a maioria de seu povo?

Na instalação imersiva Redenção, a criadora Mariana Luiza critica a ideologia do branqueamento racial no Brasil, amplamente difundida no país durante o final do século XIX e início do século XX. Ela oferece uma resposta poética e contra-colonial a esse projeto, simbolizada pela pintura Redenção de Cam.

O PROJETO

Em 1911, durante o Congresso Universal das Raças, em Londres, o Brasil revelou o seu ambicioso projeto nacional. Em um século, ou três gerações, a população brasileira seria majoritariamente branca. Exterminando completamente os negros e mestiços de sua composição. Apresentando uma avó negra, uma mãe mestiça, um pai branco e seu filho de pele clara no centro do quadro, a pintura A Redenção de Cam foi exposta durante o congresso como símbolo da ideologia do branqueamento racial no Brasil. "O negro passando a branco, na terceira geração, por efeito do cruzamento das raças".

Mais de 110 anos depois, a criadora Mariana Luiza - que se identifica como uma mulher negra - critica a política de branqueamento racial do Brasil e oferece uma resposta poética e contra-colonial a esta pintura numa instalação imersiva.

 

Redenção transforma espaço, imagem, som e cheiro num labirinto. No início da viagem, o espaço é inundado por imagens de arquivo. À medida que a exploração continua, encontramo-nos numa cavidade escura e profunda de Kalunga, ou o centro da terra. Através de um espelho de água, encontramos um destino alternativo da Redenção de Cam e encontramos a cosmovisão das presenças civilizacionais Bantu no Brasil. Sentimos o fumo, o magma, a pele e as misturas da vida e da morte. Aqui, a experiência do tempo já não é linear; pelo contrário, como acreditam os Bantu, ele se curva e se repete.

ESCRITOS DA DIREÇÃO

Centelhas luminosas percorrem as fronteiras do sonho e do mistério na luta pela vida e pertencimento. Nessa guerra contra um projeto genocida de nação, invocações celebram a vitalidade e a força do fogo, das águas e do povo preto. Envolta pela atmosfera dos encontros terrenos com o mundo ancestral, que regem os ritos de permanência e resistência do povo preto contra as forças que visam seu extermínio, água e fogo são os elementos geradores da vida que nutrem para a luta constante e infindável.

Crianças enviam mensagens aos ancestrais através de escritas gráficas, tecendo comunicações sublimadas de força e resistência. Convocações de guerra. Evocações para a rebeldia. Encantados da mata, caboclos, Maria Padilha anunciam a luta. Homens e mulheres negras tomam este país de assalto, assentando a mata como legado civilizatório, constituindo uma nação sem fronteiras, nem limitações para o povo preto, de onde são evocadas as forças contra o projeto de nação branco. A força das folhas, a força que vem do centro da terra, das profundezas do magma e das águas, faz a terra tremer.

Carl Von Martius definiu a história do Brasil por meio da metáfora do encontro das águas. O rio português, forte, "motor do país" era alimentado de pequenos afluentes negro e indígena. Acontece que o rio caudaloso que Von Martius descreveu devastou qualquer possibilidade de um encontro confluente com negros e indígenas. O rio português foi o motor da escravidão. Anos mais tarde, as águas domesticadas pela república destruíram um morro onde viviam negros e mestiços. Varrendo para as margens  da cidade, todos aqueles que a construíram.

O que a razão alemã ignorava é que as águas são as membranas dos sonhos. É pelas águas que se dá o encontro com os ancestrais. As águas carregam o início e o fim da vida. Assim como o magma, fogo primordial da criação da terra e da vida. O ciclo do fogo, fumaça, brasa, chama e cinza conduzem a narrativa de encontro e invocações ancestrais. A fumaça primordial anuncia o fim dos tempos. A chama viva corrói a nação que desejou nos destruir. As cinzas anunciam o lugar de pertença. Sem nação, sem fronteiras, sem modelo de família. Redenção convoca o fogo e a fumaça primordial para construir um lugar de pertença a todes, todas e todos. O filme é projetado em um espelho d'água. Convidando aos espectadores a se curvarem para o chão e olharem através da membrana aquosa. Contrariando o mito de narciso, o espelho d'água não reflete a imagem de quem o mira, nem reforça a importância de seu próprio reflexo, ao contrário, convida o espectador a vivenciar o tempo por meio de uma cosmo percepção ancestral Bantu, onde passado, presente e futuro se dão concomitantemente.

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FICHA TÉCNICA

formato

INSTALAÇÃO IMERSIVA

 

ano de realização

2023

país de origem

BRASIL

 

suporte

VÍDEO DIGITAL

 

duração

26 MINUTOS

especificação

COLORIDO/SONORO

première mundial

IDFA DOCLAB

financiamento

EMBAIXADA DO REINO DOS PAÍSES BAIXOS

INSTITUTO GUIMARÃES ROSA DO ITAMARATY

KOSINIMA INC.

acervos de material de arquivo

ACERVO ARQUIVO NACIONAL

ACERVO FGV

ACERVO WISCONSIN HISTORICAL SOCIETY

ACERVO MUSEU DA REPÚBLICA

COLEÇÃO - FAMÍLIA PASSOS

ACERVO FIOCRUZ

BRITISH PATHÉ ARCHIVE

BOLETINS DE EUGENIA

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL

ACERVO BIBLIOTECA NACIONAL

ACERVO HEMEROTECA NACIONAL

INSTITUTO MOREIRA SALES

ACERVO MESTRES DO SÉC. XIX

ACERVO GILBERTO FERREZ

ACERVO PEDRO CORRÊA DO LAGO

ACERVO SEBASTIÃO LACERDA

MUSEUS DA IMIGRAÇÃO DE SÃO PAULO

MUSEU HOLAMBRA

MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES DO RIO DE JANEIRO

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

ACERVO BIBLIOTECA DIGITAL DE OBRAS RARAS

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CONTEXTO HISTÓRICO

Entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX, vigoraram em várias partes do mundo teses que defendiam um padrão genético superior para a “raça” humana.

No topo da escala situava-se o homem branco europeu assumindo indiscutível liderança em termos civilizatórios, tecnológicos, intelectuais, econômicos e políticos, em comparação às demais “raças”, como a “amarela” (asiáticos), a “vermelha” (povos indígenas) e a negra (africana).

 

As correntes intelectuais que sustentaram essas teses racistas eram variadas e iam desde o determinismo de Henry Thomas Buckle, o darwinismo social de Spencer, o positivismo de Auguste Comte até as teorias de Gobineau. E tinham uma forma bastante ansiosa de se relacionar com o Tempo, mirando para o futuro, na busca de uma nação, sem perceber as joias do presente. "Brasil, o  país do futuro", se construía sob os conceitos como "evolução social", "progresso da nação", e "desenvolvimento".

O Brasil, se tornara no século XIX, um grande laboratório para estudos raciais amplamente visitado por naturalistas, intelectuais e pesquisadores estrangeiros.

Chichico Alkmim, 1910
Chichico Alkmim, 1910

O filósofo francês, Arthur de Gobineau, veio ao Brasil no ano de 1869 em missão diplomática e escreveu um artigo para o periódico francês Le Correspondant, no ano de 1874, intitulado “L’émigration au Brésil”. Segundo Gobineau, os brasileiros seriam uma raça extinta em menos de duzentos anos. Isso por serem, em sua maioria, uma população mestiça, fruto do cruzamento entre Indígenas, Negros e um pequeno número de portugueses.

 

“Já não existe nenhuma família brasileira que não tenha sangue negro e índio nas veias; o resultado são compleições raquíticas que, se nem sempre repugnantes, são sempre desagradáveis aos olhos”.

Arthur de Gobineau, L’émigration au Brésil, 1874.

Aos olhos de Gobineau, além de se mostrarem “esteticamente repugnantes”, os brasileiros carregavam defeitos ainda mais graves, como o de serem avessos ao trabalho, dados a vícios e, também, eram pouco férteis e fisicamente enfraquecidos, o que garantiria sua diminuição e aniquilamento em menos de dois séculos.

O artigo escrito para o Le Correspondant, intencionava atrair às terras brasileiras uma população “desejável”, a fim de substituir a população “degenerada” que caminhava a passos largos para o desaparecimento.

No Brasil, a mestiçagem era vista com outros olhos. Teses pseudocientíficas de darwinismo social e eugenia racial embasaram a defesa do branqueamento da população como fator necessário para o desenvolvimento do Brasil. A oligarquia brasileira, que era, e ainda permanece sendo, majoritariamente branca, passou a considerar como certo que o país não se desenvolvia porque sua população era, em sua grande maioria, composta por negros e mestiços. A imigração européia tornou-se o método ideal para colonizar e civilizar o território nacional coberto por florestas virgens (símbolo do atraso e selvageria) e "melhorar" a população brasileira.

"SUR LES MÉTIS AU BRÉSIL"

O antropólogo e médico João Baptista de Lacerda foi um dos principais expoentes da tese do embranquecimento entre os brasileiros, tendo participado, em 1911, do Congresso Universal das Raças, em Londres. Esse congresso reuniu intelectuais do mundo todo para debater o tema do racialismo e da relação das raças com o progresso das civilizações. Baptista levou ao evento o artigo “Sur les métis au Brésil”, em que defendia o fator da miscigenação como algo positivo, no caso brasileiro, por conta da sobreposição dos traços da raça branca sobre as outras, isto é, a Negra e a Indígena.

CONTEXTO HISTÓRICO NO BRASIL

“A história do Brasil é esquizofrênica" Beatriz Nascimento.

Em 1822, o Brasil conquistou sua independência política.  Conta-se nos livros de história que no dia 07 de setembro de 1822, o imperador Dom Pedro I, declarou seu grito "independência ou morte" às margens do rio Ipiranga. A imagem que se tem deste dia é a pintura "Independência ou Morte"de Pedro Américo. Uma cópia fiel de "”807, Friedman"de Jean-Louis Ernest Meissonier.

O fato é que no Brasil, naquela época, não haviam cavalos, apenas mulas (que eram mais resistentes às condições geográficas e climáticas). Sabe-se também que Dom Pedro viajava numa comitiva pequena de 4 ou 5 pessoas. A imagem oficial da independência do Brasil é uma cópia. O grito eternizado por Dom Pedro I também: "Independência ou Morte" foi o grito oficial da Revolução do Haiti. O Brasil copiou a imagem de Napoleão e o grito da primeira república negra nas Américas para fundar uma monarquia independente e escravocrata.

A nação que surgia necessitava desesperadamente de inventar sua própria história. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) criado para tal, inventou um concurso de redação para resolver uma questão um tanto quanto incômoda:  "Como se deve escrever a história do Brasil?". Tratava-se de inventar uma nova história do e para o Brasil.

O peculiar concurso teve como vencedor um personagem singular. O naturalista bávaro Karl von Martius (1794-1868). Um estrangeiro que andava pelo Brasil catalogando ervas e animais, defendeu a tese de que o país se definia por sua mistura, sem igual, de gentes e povos. Utilizando a metáfora de um caudaloso rio, correspondente à herança portuguesa que acabaria por “limpar” e “absorver os pequenos confluentes das raças indígena e preta”, representava o país a partir da singularidade e dimensão da mestiçagem de povos por aqui existentes. 

A ideia de um país harmoniosamente mestiço, só funcionava na redação de Von martius. A mestiçagem brasileira era fruto da violência caudalosa da colonização portuguesa.

RIO DE JANEIRO: DA CIDADE DOS PIANOS À PARIS DOS TRÓPICOS

O Brasil que nascia para perpetuar a escravidão continuava a se espelhar na Europa colonizadora copiando sua cultura e seus costumes, mesmo quando estes costumes não fazima sentido algum em terras tropicais.

O Rio de Janeiro, a capital do império foi por muito tempo conhecida como a “Cidade dos Pianos”, tamanha a profusão de pianos nas casas de diversas famílias que não sabiam sequer tocá-los. O instrumento se tornara um símbolo de status e de sintonia com uma forma mais culta de vida, mesmo quando essa de fato não acontecia. Nas ruas do Rio de Janeiro imperial circulavam, majoritariamente, gente preta. Escravizados e libertos que exerciam todos os tipos de serviços manuais: carregadores de mercadorias, transportadores de pessoas, vendedores de frutas, amoladores de facas e ferramentas, comerciantes de utensílios do lar, carregadores de água, carregadores de dejetos, vendedores de comida, lavadeiras etc. Em 1845-46, durante sua passagem pelo Rio de Janeiro, o viajante Thomas Ewbank escreveu em seu diário (que se tornou livro: Diário de uma visita ao país do cacau e das palmeiras):  “A inevitável tendência da escravidão por toda parte é tormar o trabalho uma atividade desonsrosa (...). A escravidão negra é regra no Brasil, e os brasileiros se retraem como horririzados ante qualqier emprego manual. Dentro do espírito das classes privilegiadas de outros países, dizem os brasileiros que não nasceram para trabalhar, mas para mandar. Pergunta-se a um jovem brasileiros de família respeitável, porém em más condições econômicas, porque não aprende um ofício e passa a ganhar a vida com independência e nove vezes em dez, ele tremerá de indignação, e perguntará se quer insultá-lo! Trabalhar?! Temos negros para isso. Sim, centenas e centenas de famílias têm um ou dois escravos, cujos ganhos constituem sua única fonte de sustento.”

Em 1890, o Brasil hasteia a bandeira republicana e inicia um projeto de higiene social e urbana com a intenção de remover e “domesticar” a população negra que vivia no centro da cidade e nos bairros arredores. O lema positivista “ordem e progresso” é colocado em prática na capital e em cidades como São Paulo, Porto Alegre e Belo Horizonte. A proposta da elite é apagar o atraso colonial e escravocrata revitalizando centros urbanos, industrializando o país até então bastante agrário e modernizando a cena cultural e social brasileira. No Rio de Janeiro, capital do antigo império e da nova república, o projeto higienista ganhou o nome de “operação Bota-Abaixo”. A operação de revitalização do centro da cidade consistia na demolição de centenas de casas e edifícios habitacionais (cortiços), onde moravam uma grande maioria negra, para construir teatros, cafés, museus, prédios públicos e grandes bulevares. A cidade foi então dividida em duas partes: Uma central e outra marginal. “Uma europeia e outra indígena”. Indígena, na época, tinha o sentido de nativo (e nativos eram os negros, indígenos, nordestinos). Os negros que habitavam o centro foram varridos para as margens da cidade, escondidos pelo projeto urbanístico das elites. E em poucos anos, a cidade “suja e enojante” deu lugar ao que conhecemos como “Cidade Maravilhosa”, ou “Paris, dos trópicos”. Leis e decretos impuseram regras à vida urbana com a intenção de restringir, mesmo após a abolição, a livre circulação de pessoas negras no centro da cidade. Os banhos de mar em Copacabana tinham horário e vestuário severamente regulados, Foram proibidas as festas populares, os batuques e “dar gritos nas ruas sem ser para objeto de necessidades, assim como é proibido a trabalhadores andar gritando pelas ruas sob pena de 48 horas de prisão”. Como regra de costume, estipulou-se que para andar nos bulevares cariocas era preciso trajar-se adequadamente: homens de fraque e luvas, mulheres de volumosos vestidos, espartilho e anáguas. Tanta roupa sob o sol escaldante e sensação térmica beirando os 40°C. E pouco a pouco, os costumes, a literatura, a música, a moda e até a comida do brasileiro se assemelhavam à Europa. 

Porém, ao mesmo tempo em que desejávamos pertencer ao “Velho Mundo”, ostentávamos um título um tanto quanto peculiar: a maior democracia racial do planeta. O único lugar no mundo onde negros, indígenas e brancos viviam em plena harmonia. O paraíso das raças… 

Desde que os negros permaneçam nas margens e os brancos no centro da nação. 

Uma nova nação surgia no Brasil Republicano. Esquizofrênica, delirante e perversa.

A NAÇÃO ESQUIZOFRÊNICA E SUAS LEIS

Entre a primeira assembleia constituinte, em 1823, até as primeiras décadas da república (1945), o tema identidade nacional foi debatido em diferentes assembleias legislativas que formularam leis com a intenção explícita de construir uma sociedade de fenótipos brancos e valores eurocrêntricos, excluindo e marginalizando o legado negro da cultura e história brasileira:

Leis que arquitetaram a expulsão de africanos livres do Brasil, tanto no período escravocrata quanto no pós-abolição; 

 

Leis que incentivaram a importação de imigrantes europeus com o intuito de manter “na composição étnica da população, as características mais convenientes da ascendência europeia” (...) “excetuados os indígenas da Ásia, ou da África”. (1870).

E até mesmo projetos leis cujas intenções racistas são mais explícitas: “proibir a entrada de qualquer pessoa negra no Brasil (...) com intuito de melhora da raça” (1921).

O Brasil contemporâneo tem muito em comum com a nação pensada pela burguesia do pós-independência. Não é raro ver a bandeira imperial flamulando em janelas de casas brasileiras nos dias de hoje. Tampouco foram raros os comentários em que o ex-presidente e alguns de seus ministros enalteceram as relações escravocratas e este projeto de nação europeizado. Há dois anos, em uma de suas lives nas redes sociais, Bolsonaro disse: “Cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós”. E nas vésperas da eleição, em 2018, Hamilton Mourão, candidato a vice-presidente declarou: "Gente, deixa eu ir lá que meus filhos estão me esperando. Meu neto é um cara bonito, viu ali. Branqueamento da raça”. O pensamento de uma raça branca superior que trouxe “o progresso e o desenvolvimento à nação” ainda é bastante vigente neste país.

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